quinta-feira, 20 de outubro de 2016

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Ao olhar para o lado,
verde campo semeado.

Continuo debulhando
sílabas entre os espaços
brancos -

alimentando sons.

E brotando da terra,
plástico.

As mãos entrelaçam

Em seguida caminhávamos ao lado de um rio. Havia certa serenidade em nossos olhares que sorriam, mas sem a completude que se espera da liberdade. Ainda assim, nossos passos eram libres. Livres porque naquele dia não existia relógio em nosso pulso aprisionando o tempo que respira em nosso corpo. Livres porque distantes não apenas do asfalto, mas das roupas do armário, do gás do fogão. Então eu perguntava-me se a liberdade consistia em simplesmente estar longe de tudo que preenche a realidade cotidiana; porque se assim fosse, estaria sentindo-me livre depois de dez dias diante as margens daquele rio? E ao passar daqueles dez dias, teria de seguir a correnteza que des'água onde eu não sei? Por isso apesar de as paredes de cimento estarem tão distantes quanto o sofá à espera que a TV volte a ligar, o estreito corredor que define os passos permanece a apertar o caminhar; e eu insisto. Continuo sorrindo com os olhos já não tão serenos, porém, ao meu lado a pureza de tocar um coração batendo em Vida; um sorriso que amadurece em cada passo e portanto, os olhos voltam a serenar. As mãos entrelaçam. 

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Mas eu só queria comprar um hambúrguer

Permanecemos intactos em vidro. Ilusão que não se desfaz em caco e do corpo acaba restando apenas um fiapo. Nós nos desculpamos pela indecente aparência de estar entre os pés que não se movem e os olhos que tudo veem e querem engolir. Não, não insistimos mas dizemos que sempre queremos sair daqui. E dizemos porque dizer parece fácil. Hoje é fácil dizer. Não há nada atrás do armário querendo levar os nossos sonhos em pesadelo. Hoje se pode dizer filho da puta no meio da rua e as pessoas ainda riem; o taxista que me vê ri e mastiga sem pensar um palito entre os dentes. Em mim vômito e o suor daquele homem escorrendo pela testa reluzente. E mesmo podendo tudo dizer, prevalece um silêncio aturdido entre o caos e meia duzia de passos perdidos que não sentem mais o cortar dos cacos de vidro. Permanecemos estilhaçados e seguimos, como se houvesse sempre mais um espaço vazio para preencher e assim comprar mais um sapato, de salto. Viver é depois porque permanecemos esmagados em ilusão líquida que se faz vidro e não se vê. Ainda bem que podemos falar filho da puta no meio da rua, pena que não reconhecemos mais o vermelho do Velázquez, o amarelo manga, a poesia da Vida no lugar do programa na TV. 

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Ser humano:
telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor.

E no entanto loucura não é passar três horas diante um ecrã 
movendo o polegar opositor para cima e para baixo. 

Loucura é trabalhar da meia noite às seis carregando galinha
em condições precárias
sem carteira assinada,
para comprar pão, arroz e feijão,
o leite o lápis o tênis (a bola'inda é de meia),
e acreditar que o futuro, será melhor.

Mas aquele outro sujeito me diz que a solução é privatizar a educação!

Ser humano:
telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e EGOÍSMO.




quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Enquanto vivo, fragmento



Pediu-me muito gentilmente para que eu não chorasse enquanto deixava a mesa e caminhava sem olhar para trás em direção à porta. Eu, como se conseguisse esquecer dos seus olhos, lábios, palavras sussurrando mentiras, fiz-me mulher de mim mesma e, sem acender um cigarro, acompanhei os seus passos até o outro lado da rua; depois acendi um cigarro e pedi uma cerveja, afinal é primavera e as noites se estendem para além do relógio na parede. Então, com muito cuidado, e, sem prestar muita atenção ao chão que sustentava a mesa, enchi o meu copo de cerveja e deixei que a espuma escorresse entre as minhas pernas e deslizasse em estreito riacho pelo chão. Deixei as pernas molhadas e com a saliva molhei a ponta do lápis que raramente se quebrava, mas que muito rapidamente precisava ser afiado feito faca que retoma a vida e, ainda vendo os seus olhos frente aos meus, escrevi as seguintes palavras: "Vejo o meu amor em sangue púrpura que se esvai do meu corpo tal qual suor encontrando a tua pele. Eu vejo os teus olhos e tu não os vê; acaricio a tua sombra e espero o teu toque em meu pescoço num despertar que jamais se repete. Espero encontrar as mãos colhendo flores e as vejo arranhando a terra como se ferisse o próprio ventre. Olho as minhas mãos sem as tuas e já não sinto tanta vontade de roer as unhas; nem a obrigação de tocar tão perfeitamente aquela partitura que caleja os dedos. Vejo meu amor em sangue simples, vermelho igual à vida que não coagula, mas jorra para fora de si mesma quando o corpo quer aprisionar. Retomo o respirar calmo, provocando o coração que quer cada vez mais uma pulsação, mais rápida e forte e me repito. Me repito em erro derrubando sem querer o copo, quebrando o vidro da janela porque esqueci as chaves pensando em não haver mais portas trancadas. Me repito em r de sorriso forte. Na gargante doendo e cuspindo sangue púrpura, igual ao que vejo, meu amor, preenchendo o meu corpo humano. E assim observo a maciez concreta da carne ao redor dos ossos; as mãos escrevendo e os passos que se redobram, voltando para o mesmo lugar."