sábado, 24 de abril de 2010

Procurar

Eu andava entre as flores de um vale, na França, caçando ratos que corriam ao me ver. Tocava minha gaita de boca, aquela que meu avô me deixou, quando ouvi o som do trem se aproximando. Sem pensar corri, corri com toda a força que eu tinha. Cheguei aos trilhos, agora era só esperar o momento exato para me jogar para dentro do trem. Assim o fiz. Mal caí dentro do trem e fui recebido com chutes que me jogavam de um lado para o outro. Parecia divertido para aquelas pobres pessoas me chutarem. Via seus sorrisos entre meio sua cara suja de lama e fedor que saía entre as orelhas e cabelos, que dirá o cheiro das roupas. Quando se cansaram [e parecia que jamais iriam se cansar], consegui ir para outro vagão do trem e me escondi atrás de umas caixas. O cheiro daqueles podres estava em mim, me embrulhou o estômago. Não conheço as cidades que passo, resolvo descer em uma que avistei uma linda donzela de peitos de fora. Pulei do trem e sai andando. Jogando todo meu charme entre uma rua e outra. Não precisei andar muito, logo uma gatinha ficou a me olhar, encantada com o lenço preto em meu pescoço, ela sabia o porquê daquele lenço. Não foi difícil e logo a possuí, virei as costas e saí. Ascendi meu cigarro e disse para ela que, poderia chamar de orgasmo aquilo que sentira, mas para mim era outra coisa. Andei pelos guetos quando anoiteceu. Não encontrei o que procurava, mas encontrei briga. Saí todo arrebentado, ás vezes esqueço que não sou mais tão jovem. Mesmo arrebentado, alguns me respeitavam. Respeitavam na verdade o lenço preto no meu pescoço. Sabiam o que eu estava procurando.
Fiquei alguns dias naquela cidade, sem nada encontrar. Vi o sol nascer, bebendo água de um riacho; disse para mim mesmo: ‘é nessa noite que eu o encontro, ou que o vento me leve no caminho certo.’ Minhas feridas curavam-se sozinhas. Como se meu corpo quisesse que eu continuasse a busca. Assim fiz. Observado cada pedra que se movimentava na rua, me deparo com um bar. Algumas prostitutas do lado de fora, sendo penetradas ali mesmo, na parede do lado do bar, me fez lembrar aquela gatinha de uns dias atrás; na minha mãe dizendo que eu deveria me acalmar, casar; e na minha felicidade de estar andando sozinho. Distraído nesses pensamentos, vi atrás do balcão... ali estava ele. O sangue ferveu nas minhas veias, atravessei a porta de entrada, e sem me desviar fui na sua direção. Podem chamar de covardia, mas o ataquei pelas costas. Nossa briga chamou atenção, depois de alguns minutos de briga, copos quebrados pelo chão, alguém atira uma faca, que supostamente deveria ter me acertado, mas acertou a cabeça daquele que eu queria matar, mas que agora estava morto. Seu sangue ficou na minha cara. Alguém então pega uma arma e começa a atirar em mim, eu corro de um lado para o outro até que consigo sair do bar. Estou ferido, mas nenhuma bala me atinge. Esta noite acaba com uma briga duas quadras depois do bar, eu bato e apanho, acabo por ficar desmaiado, vertendo sangue... Satisfeito. Agora só faltavam mais seis para que eu pudesse tirar o lenço preto do meu pescoço...
‘Espera aí, como é que você está vivo aqui, agora, depois de tudo isso?’ Interrompe o cão, indignado com tudo que ouvira.
Bem, eu sou um gato. Tenho sete vidas, não se lembra?

Descascar a pele

E depois de atravessar universos inúmeras vezes, no meio do caos que meus pensamentos se transformavam: todo aquele barulho que a mistura de sons fazia, trazendo cor para a fumaça, sem perceber, eu adormecia. Olhos abertos adormecidos. O caos continuava, e eu, por alguns minutos me afastava de toda aquela confusão, bagunça em meio a estrelas, ossos, rimas, explosão de perfumes. É tão bom estar no silêncio, no som da vida, da ausência de vida fútil. Longe de qualquer célula, músculo, olhos... Longe até mesmo das minhas mãos. Contemplar o silêncio da vida e num piscar de olhos, voltar para o caos.
A confusão que me cercava me enlouquecia. Ouvir, ouvir, sentir, sentir, fechar os olhos e ver, pegavam nas minhas mãos para que eu tocasse. Não se podia evitar. Eu estava ali. Tudo isso [que olhando agora, é pouco], me fez pensar em me atirar pela janela. Não a janela dos sonhos, com todas as balas coloridas e flores comestíveis gigantes. Mas a janela da minha casa, que dava em um chão de cimento tão cinza e frio, que doía andar sobre ele. Imagino o estrago que causaria à minha carne quando se encontrasse com o chão. Tudo não passou de imaginação. Começo a pensar que tudo não passa de imaginação. As minhas mãos deslizando entre um copo e outro; a saliva escorrendo no canto da boca. A face pigmentada de azul. Tudo imaginação. Como se eu tivesse ativado o poço da imaginação dentro de mim, e a todo segundo jogasse uma moedinha no meio da água densa e colorida, transformando tudo que eu desejara...
Então, eu simplesmente, deveria parar de alimentar o poço. Deixá-lo ali, para que esfriasse, evaporasse. Quanta ingenuidade de minha parte. Se não alimento o poço, não me alimento. Acabo ficando tão cinza quanto o chão que eu desprezava, nessa hora o chão tem mais vida do que eu. Eu choro. Lágrimas doces que escorem dos meus olhos. Eu choro na frente do espelho. Preciso ver-me em tristeza e pranto. Ver a amargura fixada nos meus olhos. A dor não vai embora quando se chora. Ela se acalma. Por vezes o estômago repulsa o que faço descer goela abaixo para continuar em pé. Vômito misturado á lágrimas na pia do banheiro. Ninguém vê, além de mim. Depois de algumas horas ali em vertigem; depois de longos combates circulando o caos, eu me despedaço. Desmaio atrás da porta. Acordo ainda em lágrimas e batalhas. Preciso ir para debaixo do chuveiro. A água me ajuda.
O caos não pára. O caos não pára. Se soubesse o que é viver no caos, pararia de alimentar teus medos bobos. Tua insegurança e falta de vida, pensando que andar durante um dia todo, justificasse o que você sente. Você nem sabe o que você sente, só pensa que sabe, mas não sabe. Deixe teus cabelos assim, como estão. Pegue na tua própria mão... Voe.
Cada vez que alguém abre as assas, o caos vai embora...
[...]

Sem cortinas

A maneira com que se convive com a dor, é a mesma maneira com que se convive com os sorrisos. Tanto as dores, quanto os risos, fazem parte de cada passo que se dá. De cada abrir de olhos numa manhã gelada de inverno, ou no fim de tarde do verão. Eu estou procurando entender a música que toca além da minha janela, ela não me deixa pensar. Ela não me deixa nada fazer. Então, eu tapo os ouvidos. Automaticamente não ouço mais nada, nem o meu roer de unhas que acontece mentalmente, na expectativa de que a música tenha passado. Medo... Medo de destapar os ouvidos e ela ainda esteja ali, soando frio pelo ar; com todos aqueles acordes e arpejos, por hora até dançantes; mas que traziam dor.
Vogais e consoantes misturadas traziam a minha dor. Traziam a minha alegria. Faziam o meu movimento, leve, pesado. Numa ida e volta para todos os lados... Nesse momento, lados não existem mais. O espaço se dissolve ao nada, apenas se flutua... No nada. No nada que se torna, que se é, que se foi e que se vai ser. Na forma específica do nada. Precisamos morrer. Precisamos viver. Acaba-se morrendo, antes mesmo de morrer. Matar-se em vida para assim, poder viver. Viver na forma específica do nada. Não ouvir outra música se não a própria música do seu Ser. Não ouvir, não ver, não tocar, não sentir o cheiro dos pêssegos... Nem o toque da pele... Ao longo de anos, se sente tudo, para então, compreender tudo o que se sentiu. Saber o que pode vir a sentir, não se surpreender nenhum pouco com o que se pode vir a sentir. Por fim, não sentir mais nada. Mesmo andando contra o vento, ou nu no gelo.
A atração pela vida acaba nesse momento. Prefere-se o nada. O nada encanta mais, do que todos esses falsos sentimentos vividos ao meu redor. A música continua a soar além da minha janela, que insiste em continuar aberta, alimentando toda a fúria do vidro misturado a tinta. Trincado, pacientemente esperando a hora certa de quebrar. No som agudo se desfazer. Então, eu cortarei minha mão recolhendo os minúsculos pedacinhos de vidro que ficarão sobre a minha cama. Sangue, pó, vento e música, numa tarde qualquer de terça ou sexta-feira. Andar até a padaria, comprar pão; comê-lo com meu sangue. A música ainda soa...
[...]

Meio Fio

Eu vejo a vida afogando pessoas a todo instante. Inundando a sua alma com ondas frias e salgadas. Ensopando seus corpos, consumindo seus dias. É tão fácil, simples, encontrar e perder pessoas no mesmo instante, quando não se está na mesma ‘conexão’. É tão fácil encontrar pessoas que não te compreendam, pelo simples fato de não compreenderem elas mesmas. Na verdade, acredito que quase todas as pessoas do mundo não se entendem, estão em constante conflito. Buscam, caminham... Sempre naquela linha que todos criamos em nossa cabeça, que nos prende por tanto tempo. Muitos não se prendem dessa linha, afinal, ela está tão bem traçada na suas cabeças, que acabaram tornando-se parte de cada indivíduo, estes que acabam por nem se dar conta da sua existência. Outros, porém, a cortam e acabam na ilusão de não saber o que fazer. Não sabem o que fazer, nem tentam algo novo a se fazer. Por fim, se acomodam. São poucos os que cortam a linha, e conseguem se manter em pé. Encontrar o equilíbrio para se manter em pé, mesmo não existindo corda para andar. Nem vinho para beber. Afinal, as coisas acabam sumindo, quando a corda é cortada. É como dar um passo para a inexistência total. Um segundo e está feito. Ou você faz com que seus pés dêem o passo ‘certo’, ou, cai e fica a mercê, esperando que alguém te olhe com pena para te ajudar a levantar, porque a essa altura, humanos não levantam mais sozinhos. É uma pena dizer isso, mas não levantam. Ficam ali, estirados no chão, às vezes até sorrindo, mesmo levando cuspes e ponta-pés. São tão insanos que acham graça na sua total invisibilidade no meio da rua. Iludem-se na cor dos carros que passam; nas pernas da moça que compra sapatos; na cachaça do bar; nas moedas que lhes são atiradas junto com uma carteira de trabalho que mostra o tamanho da sua dignidade. O tamanho da sua capacidade. [não seria, a falta dela?]
Submissos á tudo, porque são submissos á eles mesmos. Não sabem onde vão, só sabem que estão indo. Matam seus monstros e anjos. Matam-se a si mesmos... Sustentam seus monstros e anjos, não sustentam a si mesmos.
[...]
Mas alguns sorrisos são sinceros. Um dia encontrei um par de mãos, talvez as mais bonitas que vira até hoje. Nem tudo está perdido... Ainda, há ainda no que acreditar.
Aqueles que cortam a corda e conseguem continuar a andar, fazem todo o espaço girar.
[...]

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Os dias

O que você quer, que o mundo pode dar.
Um carro uma casa, um alguém prá amar.
O que você quer, que o mundo lhe dá!
Dinheiro, negócios, alguém com quem recomeçar.

E todo o dia, é sempre assim.
Eu espero você... prá mim.
E todo dia, é assim.
A chuva clareia os teus olhos em mim.

Mas eu realmente, só quero dizer.
Que literalmente eu esqueci você.
Mas realmente, só quero te ver.
Necessariamente eu preciso de você.

E todo dia, é sempre assim.
Eu em você, você em mim.
Como é bom o dia, ser sempre assim.
Ter você, pertinho de mim.

Contudo a noite veio me dizer.
Que o meu biscoito da sorte é você.
No meio das flores, eu pude ver.
O meu espelho maior é você.

E todo dia, é sempre assim.
Reflito em você, o que você reflete em mim.
Ah o meu dia, sim vai ter um fim.
Você nos meus braços, não vai ser sempre assim.


Toda vida que há em mim na vida.

O meu nariz sangrava todos os dias. Um sangue puro. Com um vermelho que parecia brilhar conforme a luz o tocava. Eu não sabia porque o meu nariz sangrava tanto, e acabei me acostumando a acordar com o travesseiro ensopado de sangue. Afinal, eu não sentia nada de anormal para justificar o porquê daquele sangue. Então deixei o tempo passar. Mas fiquei com a idéia de que tinha alguma coisa errada me corroendo, em algum lugar em mim, batendo na minha cabeça, como se alguém estivesse pregando pregos nela. Decidi então procurar o médico. E lá fui eu. O médico disse que eu deveria tê-lo procurado antes, que não é normal isso. Fez-me várias perguntas, uma qual me fez lembrar de quando era bem pequena e ficara uma noite inteira com o nariz sangrando; quando o sangue só parara de sair depois de algumas injeções que não me recordo direito, mas lembro que doía muito. Ele me olhava com a testa franzida, olhar de insegurança, sem saber o que fazer. Me pediu que fizesse alguns exames, daqueles que chamam "da cabeça" [quais eu não sei o nome, não sei porque inventam nomes tão difíceis para tais exames], e que voltasse alguns dias depois. Nesses dias em que estive esperando os exames, o sangramento aumentou. Como se repulsasse a idéia de ter ido ver um médico. ‘Deveria ter ficado em casa e lavado meus lençóis de sangue!’ Eu pensara. Mas deixei mais uma vez o dia passar. Como um dia qualquer.
Não dormi direito na noite que antecedeu o dia em que eu ia ver o médico. Estava ansiosa e, mais uma vez, meu nariz sangrou. Lembro de todos os meus passos até a clínica. Lembro da cor do tapete, do sorriso falso da secretária que não agüentava estar ali presa entre telefones e canetas. Da face das pessoas que esperavam a sua vez de ser atendida e por fim, do olhar do médico quando me chamou e pediu que sentasse na cadeira com estofado cinza. O médico estava muito educado, me pedira como eu estava me sentido, se estava feliz, se estava namorando, se tinha muitos amigos; enfim, me pedira muitas coisas e tentava ser o mais doce que pudera. Até me ofereceu pequenas balas de frutas que tinha em sua gaveta. E que eu recusei, sempre tinha bala ou algum doce na minha bolsa. Então ele me disse: ‘Prefiro entregar teus exames na presença dos teus pais. Não necessariamente os dois, mas tua mãe principalmente poderia te acompanhar até aqui. Marcamos para amanhã, pode ser? Hoje está bem cheio, terá de ser ama...’ Não! Eu o interrompi. Não pode ser amanhã, nem hoje á tarde. Minha mãe mora em outra cidade, sou eu quem toma conta de mim. Se tiver de falar qualquer coisa que seja, terá de ser para mim! Ele respirou fundo, e me perguntou: ‘Você mora sozinha?’ Sim, lhe respondi. ‘Então, eu sugiro que você encontre alguém para morar contigo. Sugiro não. Você vai precisar ter alguém perto de você!’ Comecei a tremer. Como assim, preciso de alguém perto de mim? Sempre me virei muito bem sozinha. Sou totalmente independente. Me graduei, tenho meu apartamento, um emprego razoável. Vivo muito bem sozinha. Por que diabos vou ter que ter alguém ‘perto de mim’? Poderia ser mais claro? Perguntei. ‘Você está doente. Está doente há muito tempo... é o que dizem teus exames. Deveria realmente ter me procurado antes!’ Mas eu me sinto muito bem doutor. Não sinto dificuldade alguma para realizar nenhuma atividade. Me alimento bem, faço minhas caminhadas; tenho uma vida muito agradável. Não me sinto mal nem quando meu nariz sangra! ‘E é justamente pelo fato do teu nariz sangrar que você está doente. ’
Ficamos quase duas horas ali, conversando. Eu não me interessei em saber o nome da doença, tão pouco o diagnóstico. Ela estava ali, desde que eu nasci e eu nunca percebera. De certa forma, lembro de alguns momentos em minha vida em que tinha certeza de que havia alguma coisa de errado comigo. Sensação do cérebro a se mover. Olhos trêmulos. Descontrole das veias. Não são coisas que as pessoas geralmente sentem. Eu sentia e acabava pensando que era só um desvio dos meus pensamentos refletidos na minha imaginação, aguçando os meus órgãos... Fazendo com que parecesse real, mas que na verdade não era. E que agora, sei que era realmente real. Saí do consultório com o médico quase gritando, pedindo que eu voltasse, dizendo que ele podia me ajudar. Eu respondi seus pequenos gritos com um sorriso. Ele calou-se e ficou me olhando. Eu não o olhei novamente, mas tenho certeza de que ele me olhou enquanto eu atravessava a rua fazendo suas orações, pedindo por mim.
Naquele dia eu não direcionei meus pensamentos para nada, deixei que fossem flutuando junto com a rua. Lembro que apenas caminhei. Caminhei... Caminhei. Comprei um saco de pipocas coloridas e me sentei em um banco qualquer de uma praça com nome famoso. Sorri para tudo ao meu redor. Para os velhinhos jogando xadrez, as crianças no parquinho, os cachorros de rua que andavam de um lado para o outro, procurando um rumo. Aí me lembrei de quando eu era um cachorro daqueles, procurando um rumo na vida, andando, andando e sem saber onde ir. Até que encontrei meu lugar. Ou construí meu lugar. Eu também possuía a total insignificância daqueles cachorros. Quem daria falta de um cachorro de rua? Ninguém. Talvez esses moleques coitados jogados no mundo, que por conta da vida que foram praticamente obrigados a levar, acabam por encontrar diversão nas pedras que jogam nesses cachorros de rua.
Assim eu me sentia. Totalmente insignificante. Vinte e poucos anos, com minha vida andando muito bem. Tinha conquistado tudo que desejara. E derrepente, tudo que conquistara perdera sentido. A vida é podre. Crescemos e mudamos de sonhos, realizamos os poucos que sobrevivem. De certa forma, chega um tempo que os dias se resumem em esperar a morte. Eu nunca havia parado para pensar nisso. Em como o rumo da minha vida estava seguindo. Encontrar alguém para constituir uma família, ou, ficar na minha solidão [da qual eu muito gostara]. Aquela doença só aceleraria os dias.
Saber que a qualquer instante você pode morrer te faz sentir mais viva do que nunca. Mas, todas as pessoas, independente de ter uma doença ou não, sabem que podem parar de respirar a qualquer instante de suas vidas; mas a maioria ignora isso e acabam vivendo de qualquer maneira. Deixam-se dominar pelos medos, pela tristeza, pela solidão de si mesmos, pela depressão do céu cinza... É engraçado como o ser humano só aprende a dar valor para as coisas depois que as perde, começa a viver depois que sente a morte mais perto. Por vezes, nem vive. Não que eu estivesse sentindo vontade de fazer tudo em um segundo. Na verdade, estava. Mas queria controlar isso [como sempre fizera com tudo que sentia.].
[continuação: 'Toda vida que há em mim na vida.']
Levantei-me do banco e tomei o rumo do meu apartamento. Chegando, não usei o elevador, subi vagarosamente cada degrau que compõe a escada. Parecia que conseguia ver cada partícula de poeira ali no chão. Parecia que conseguia ver cada pessoa que passara por aqueles degraus antes de mim, e, tinha certeza de que nenhuma se lembraria de mim, eu usava o elevador. Fiquei parada olhando para minha porta fechada, nostalgicamente apreciando tudo que ele guardava nas suas costas. Até que meu vizinho que beirava os quarenta, enquanto segurava uma maleta e afrouxava a gravata, veio em minha direção perguntando se eu por acaso, havia perdido minha chave. Não, não. Estou com ela em minhas mãos. Eu disse e ele insistiu: ‘O que faz aí parada então?’ Estava olhando para porta, respondi. Ele fez uma expressão de não ter entendido o que eu acabara de dizer, e me disse: ‘Se você precisar de alguma coisa, tem uma campainha ao lado da minha porta. Minha esposa pode te ajudar no que for, ela é uma ótima fisioterapeuta, vê bastante gente o dia todo, pode conversar com ela, que tenho certeza que te entenderá!’ Estou bem. Eu disse. Mas obrigada mesmo assim, qualquer coisa, chamá-los-ei. Ele poderia ter dito que sua esposa era simplesmente humana, mas, prevalece o que se faz. Abri a porta, e dessa vez somente a fechei, sem passar a chave. “Que os ladrões roubem os meus bens e o meu coração!” Coloquei meus exames numa gaveta qualquer e fui tomar um banho. Tirar o peso do dia da minha pele e regenerá-la para que pudesse agüentar o peso do dia seguinte [como se dias fossem pesados, não leves]. Ali estava eu. Nua. Olhando para mim mesma. Tocando em cada pedacinho do meu corpo, contemplando cada célula do meu corpo. Saí do banho, quando meus dedos estavam todos enrugados por conta da água quente. Sem a menor pressa me vesti. Preparei um macarrão bem simples, mas com muito molho, eu gostava muito de cozinhar, apesar de fazer coisas simples. Quando me senti satisfeita, com o estômago cheio de macarrão, fiz um café. Arrastei meu pequeno sofá até a sacada, estirei-me nele e fiquei horas contemplando as estrelas que piscavam para mim no céu. Adormeci.
Este foi o primeiro dia dos mais curtos da minha vida. Todos os dias que sucederam á este estão cravados em alguma parte de mim. Lembro de cada segundo, cada cheiro e gosto que senti naqueles dias. Lembro dos segundos, das folhas caindo lentamente, das pessoas se movimentando ao meu redor, como se estivessem todas dançando livremente. Todo o colorido real que eu passei a ver. Lembro de tudo. Mas uma informação foi-me apagada... Lembro de cada fragmento do tempo da minha vida naqueles dias, menos as datas. Estava numa feira típica da cidade. Muitas pessoas sorrindo, crianças correndo. Comprei um algodão doce e saí sorrindo para a multidão que lá se divertira. Caminhei com meu algodão doce até perto da ponte do lago que levava a um gramado lindo, no qual eu planejava me deitar e ver o céu. Alguns metros antes da ponte, senti um movimento intenso em cada parte do meu corpo. Senti cada órgão funcionando, e, depois de sentir tudo que me mantinha viva, senti cada parte de mim morrer. Caída ao chão, lembro da extrema lentidão com que tudo ao meu redor se moveu. Devagar, devagar, devagar... Meu cérebro foi o último a se ‘entregar’. Dói não conseguir mover os pés, mãos, olhos. Dói não respirar, não sentir vida. Naquele instante doeu. Mas a doçura do algodão doce, que havia ficado na minha boca, trazia um sentido para tudo aquilo. Eu morri em um dia qualquer, com pessoas sorrindo, chorando, nascendo e morrendo em cada canto do mundo, exatamente naquele instante. Talvez seja por isso, na transmissão involuntária que acontece sem que percebamos de todas as energias do mundo, que criaram esse lugar onde eu estou. Talvez eu não me recorde do dia da minha morte, porque assim, poderia voltar lá. Não que eu sinta falta daquilo tudo. Não que eu não sinta... Aprendi a viver perto de morrer. Mesmo assim, estou aqui. Movimentando tudo em volta de mim... Mas sinto falta do algodão doce.



[...]

-

O meu coração nunca foi inteiro. E quando eu cresci, ele só se despedaçou mais ainda.
Vivia quebrado, arrebentado. Mas ninguém percebia, sempre mantinha o sorriso nos lábios. Engolindo as dores e lágrimas. Assim me tornei mais forte. Assim eu pegava minha bicicleta e pedalava até não sentir mais as pernas, só o vento quebrando entre meu rosto.
[...]
Assim eu encontrei pessoas que partilharam o seu coração, para que eu compreendesse que os corações são todos inteiros nesse partilhar. 

terça-feira, 13 de abril de 2010

Inspirar o horizonte

Não tenha medo de sonhar. Procure viver e sentir cada batida do teu coração, clamando prá viver. Deixe as lembranças nas folhas de papel. Mas não se esqueça de você, viva por você. Sinta cada célula do teu corpo, assim poderá sentir as células que te cercam. Respire, deixe o ar livre... Corte os laços dos medos que te prendem, dos medos que não te deixam dar o próximo passo e então, permita-se dar o próximo passo. Faça com que teus traumas fiquem numa página amarela da tua vida, pois, num verão qualquer você fará uma fogueira, e sentirá a brisa da liberdade completa. Sem nada que te prenda no passado, nem no futuro; só com o presente nos teus pés e o céu na tua frente. Não deixe que o medo da chuva, do escuro, ou de uma pedra no meio do asfalto, te impeçam de experimentar a magnitude que é estar vivo. Mais uma vez: permita-se. Permita-se tudo! Aprenda a lidar com o possível arrependimento de se permitir tudo. E procure entender e discernir quando o tudo e o nada estiverem juntos, na mesma moeda, para não tomar o rumo errado, e acabar nas estradas que não deveria estar. Mas, se por acaso cair nessas estradas, quais não deveria estar, acabe por viver o melhor nessa estrada. Logo você permitirá que esta estrada te leve de volta ao teu rumo. Não culpe o destino por nada que lhe acontece. Compreenda que tudo que acontece a tua volta [e até mesmo longe], acontece porque você permitiu acontecer, direta ou indiretamente. Não culpe teus pais, teus amigos, teu carro... Não culpe nada, nem ninguém além de você mesmo. E da mesma forma com que te culpa, encontre teu próprio perdão. Te contemple: pela tua boca com sorriso que encanta, tuas mãos que tem o toque do céu! Pelos teus olhos com o brilho imenso! Te contemple na tua magnitude e simplicidade. Contemple tua grandiosidade. Quando olhar pela janela e sentir o mundo escuro, mostre os teus olhos cheios de luz! Da luz que só você tem.
Não tenha medo, segure firme em você mesmo. Conseguirá confiar em outras pessoas, quando conseguires confiar em si mesmo. Quando conseguires, realmente confiar em si mesmo, sentir você em você, aí entenderá totalmente a tua grandiosidade. Só depois disso, conseguirá voar. Conduzirá teus passos como o maestro conduz a sinfonia. A tua vida se transformará, ficará em extrema sintonia com tudo que te cerca. Faz do perto, longe; e do longe, perto. Traga-os juntos, no mesmo instante, desfaz a distância. Transparece todos os sentidos. Muda e cria sentidos. Os limites se tornam muito maiores [passam até, por vezes a não existir].
Quando você sente o milagre que acontece toda vez que nossas pálpebras vão de encontro aos nossos olhos, compreende cada centímetro que te cerca. Nada mais te confunde. Está aí o equilíbrio... Não se encontra fora, o que está dentro. Quando se percebe as necessidades interiores, busca-se no próprio interior o suprimento. O exterior apenas a complementa. Faz a palavra completo, acontecer. Eis a vida, o sentir. Encontrar-se primeiro, em si mesmo, para conseguir se encontrar em outra pessoa. Sentir a vida pulsando intensamente nas tuas mãos, para depois deixar que ela se reflita nos outros. Refletir e aceitar outro reflexo. [A troca existe, para que se possa crescer. Tornar a luz maior.] Compreender que os reflexos são diferentes. Que tua energia pode ser maior ou menor que a energia ao teu lado. No entanto, isso não te faz maior ou menor. Não te faz mais fraco ou mais forte. A única diferença nessa questão de luz, é que, uma pode brilhar em um tom mais forte que a outra, mas, as duas existem para Iluminar. Perceba que luzes abraçadas tornam-se mais radiantes, causam um reflexo maior. [...] Veja que as luzes não estão só acima da nossa cabeça, como estão em todos os lados. [e dentro...]
Não tenha medo. Faça tudo acontecer! A vida te belisca em cada segundo, pedindo que você a deixe voar. Voe... Voe na altura certa, na altura exata que teus dedos medirão. Aí então, quando estiveres na tua própria altura, terás alguém que pegará na tua mão no mesmo instante em que você pegar na mão desse alguém.
[...]
No entanto, quando não há reciprocidade completa na troca de olhos, alguém acaba por ficar cego!

domingo, 11 de abril de 2010

Dos olhos, sentir.

Eu rabiscava meus próprios olhos de vermelho, prá esconder o branco puro que cercava a verdadeira cor dos meus olhos. Cor que variava conforme meu humor. Variava conforme o clima que se fazia lá fora, além da porta do meu quarto; também com o clima que fazia aqui dentro: dentro do meu próprio eu, por vezes escondido.
Algumas vezes, a ausência de cor que meus olhos refletiam, era tão forte quanto a luz da Lua. Outras vezes, a soma de todas as cores trazia a escuridão no meu olhar, como olhos famintos de uma coruja.
Mas eu não me importava com o que os meus olhos transpareceriam. Sabia que independente da cor que ele estivesse, estaria transmitindo exatamente o que sentira naquele momento. A sinceridade que meus olhos mostravam era intensa.
Olhava fixamente para tudo que almejava. Olhava fixamente para tudo que repugnava. Assim, conseguia distinguir muito bem o que meus ossos desejavam ou não em cada instante da minha pequena vida. Pequena grande vida.
Eu tinha olhos grandes, tinha olhos pequenos... Conseguia ver muito bem além do horizonte. Sabia o que existia atrás das paredes dos prédios e do coração. Conseguia ver cada víscera daqueles que passavam no meu caminho, ou, dos caminhos dos outros em que eu, por um motivo ou outro acabara passando.
Eu era olhos. Os olhos era eu. Juntos éramos três em um só. Dividindo o mesmo espaço. Procurando acordo nos pensamentos. Movimentando a pálpebra da vida. Pálpebra colorida, que eu mesmo pintara com as cores do arco-íris.
Os meus olhos me mostravam onde meus pés deveriam ir. Os meus olhos sorriam tanto quanto minha boca, naqueles imensos momentos intensos de felicidade. Os meus olhos brilhavam tanto quanto o Sol, quando viam outros olhos que brilhavam ao me olhar. Também, meus olhos derramavam as mais tristes lágrimas. Salgadas. Por hora amargas, que acabavam se misturando à minha face e às minhas mãos que as enxugavam. Ou ainda, simplesmente se misturavam à terra... Pois, tantas foram as vezes em que as deixei cair até o chão, para que ele ás sugasse e as transformasse em raízes de flores amarelas que mais tarde meus olhos veriam e colheriam. Como em um ciclo.
Os meus olhos me diziam a hora certa de atravessar a rua. Diziam-me a hora certa de parar ou de ir além. Meus olhos traçavam o limite que eu podia tocar. Mesmo que esse limite não alcançasse minha vista.
Meus olhos me permitiam tudo e nada.
Algumas vezes precisava os fechar, adormecer para que do outro lado eles pudessem continuar a ver.
Os meus olhos não se cansavam! Cheguei até a pensar em arrancá-los para assim não ver mais nada! Nem a doçura dos bolos de chocolate das tardes de domingo, nem a amargura da fome longe de casa. Não ver... Porém, sabia que mesmo que os arrancasse, continuaria vendo tudo que bem desejara, e até o que não queria ver. Não precisamos de olhos para ver tudo o que está bem a nossa frente. Nem o que está longe. Os olhos, só são uma pequena, entretanto bonita, porta para tudo o que corre nas veias do céu e do oceano.
Os meus olhos sentiam sede, fome, náuseas. Como se possuíssem vida própria. E possuíam. Certo dia, consegui vê-los andando. Caminhando para longe e me chamando para que os acompanhassem. E eu fui... Não podia deixar meus olhos vagando sozinhos pelas estradas do mundo e submundo que nos cerca. Sabia que queriam me mostrar alguma coisa que eu ainda não havia percebido, encontrado, deslumbrado...
... Meus pensamentos estavam certos. Eles só não queriam me mostrar alguma coisa, como queriam ser dessa outra ‘coisa’. [...]
Os meus olhos me mostraram, que o amor, muito mais do que troca de corações, é a troca de olhos. Entregar seus próprios olhos para alguém e receber os olhos desse outro alguém. Numa troca. Na reciprocidade completa! Ver como este outro alguém vê, para assim, partilhar da nobreza que é viver. Como a pureza que o Sol resplandece refletindo na Lua, iluminando a noite. Permitir que um alguém veja com teus olhos, sinta com teus olhos, tudo que você até então sentiu, viu, viveu. Compartilhar o que realmente se é. Aceitar e ser aceito...
Os olhos mostram a essência do puro amor. Onde rabisco algum esconde a pureza do olhar...


Então, naquela tarde com sol queimando a minha pele... Tarde com o vento soprando levemente na queimadura que o sol me causava... Com o Vento que fazia com que os grãos de areia se movessem lentamente até meus pés...
Ali, apreciando tudo que me cercava, com meus olhos fechados e as mãos tocando o vento, eu ouvi uma voz que se aproximava. A voz de alguém que eu não conhecia, mas que no momento em que abri meus olhos, pude ver o seu olhar fixo no meu, me perguntando se tudo o que eu escrevera aqui era realmente real. Se tudo que ele lera era de verdade. Eu devolvi o olhar fixo, e, acreditando que naquele momento ele desvendou a resposta do que havia me perguntado, insisti e mesmo assim lhe respondi: Diga-me você!... Você acredita nas palavras que aqui-ali-lá estão? Na sua verdade? Você acredita nas minhas palavras?

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Sobre o tempo ...

Não revelarei segredos. Está bem à nossa frente.
Do tempo não se corre atrás. Tão pouco ele corre atrás da gente.
Do tempo, não se espera, se faz. Com ele, não dele.
Do tempo não se volta, a não ser nas lembranças.
Do tempo não se conserta. No entanto, às vezes se é consertado por ele.
Do tempo não se prevê. Às vezes só se imagina.
O tempo não pára. Contudo, certas coisas não se perdem no tempo.
O tempo, não se deixa atrás, nem á frete. O tempo deve caminhar ao lado.
O tempo ergue as montanhas, e ele mesmo as destrói.
Da chuva faz o céu, e do céu as estrelas.
O tempo não faz tic tac. Ele faz o som da nossa vida.
O tempo tem o cheiro do nosso abrir de olhos. Tem o gosto da nossa voz. A suavidade dos nossos ouvidos. [...]
No tempo se é!

Olhos frios.

Correndo para todos os lados o coração pára.
É inevitável. Ele pára, e sem perceber se está no chão. Com toda a sua vida bem á sua frente: passado, presente e futuro na mesma caixa. Uma mescla de tudo que se viveu ou se ia viver.
Suor e lágrimas se misturam junto ao sangue que foi parando nas veias pouco a pouco.
A imagem do chão é colada na retina dos olhos, como última imagem vista. Para você se lembrar exatamente onde seus pés te levaram.
Os ouvidos já não ouvem mais a música que te fazia sorrir; nem a que te fazia chorar. Já não ouve mais o som da mãe gritando para acordar, ou da vizinha dizendo bom dia enquanto limpava o chão. O doce som da amada sussurrando seu amor. Nem o grito no meio do jogo de cartas, quando misturava uísque sem graça com sorrisos amarelos. Se quer ouviu o próprio tombo. Talvez tenha morrido antes mesmo de cair ao chão. Afinal, um tiro na nuca é sempre uma boa desculpa!
Uma boa desculpa para se morrer no meio da rua, em uma madrugada com vento de outono. Caiu tão lentamente quanto as folhas das árvores ao seu redor. Podia vê-lo caindo em ‘câmera lenta’; igual aos filmes que vira anos atrás, quando ainda me aliava a cabeça sentar em frente a uma TV, e me infiltrar naqueles filmes com tiros e pianos e belas donzelas a me seduzir. Mas isso já não importa mais. Também não sei como fui recordar disso agora. Nesse momento, olhando este homem morto bem em minha frente. Talvez tenha lembrado porque, de certa forma, todos aqueles filmes com tiros e fogo, me inspiraram a levar a vida que levo. Mas o que me inspira também não importa. Nada mais importa agora. Ele está morto. Consegui sugar seu último segundo de vida. Como se pudesse respirar a pureza de viver que saía entre sua boca encostada meio ao asfalto.
Olhei para aquele homem pela última vez e tive certeza de que o que eu acabara de fazer estava certo. Acendi meu cigarro e me ascendi no meu trono. Fui até meu carro, retirei minhas luvas e coloquei o Requiem em mi menor de Mozart. Ah como Mozart foi um ótimo compositor. Me liberta!
Em alguns segundos esqueci do grande propósito, pelo qual matei aquele homem. Como tantos outros. Consegui flutuar com a lua em meio a garrafa de vinho e a areia que o mar beijava aquela noite. Como é magnífico estar vivo! Eu sorria como uma criança! Mas sabia que ainda tinha muito pela frente. Comprei mais uma garrafa de vinho e contemplei a noite até a chegada do sol. Assim que o sol tocou o mar, me despi e mergulhei... Estava limpo! Purificando a minha alma! Me vesti e fui viver minha normalidade nos dias que se seguem. Como se nada tivesse acontecido, como se nada fosse acontecer. Eis o segredo! [...]