segunda-feira, 19 de abril de 2010

Toda vida que há em mim na vida.

O meu nariz sangrava todos os dias. Um sangue puro. Com um vermelho que parecia brilhar conforme a luz o tocava. Eu não sabia porque o meu nariz sangrava tanto, e acabei me acostumando a acordar com o travesseiro ensopado de sangue. Afinal, eu não sentia nada de anormal para justificar o porquê daquele sangue. Então deixei o tempo passar. Mas fiquei com a idéia de que tinha alguma coisa errada me corroendo, em algum lugar em mim, batendo na minha cabeça, como se alguém estivesse pregando pregos nela. Decidi então procurar o médico. E lá fui eu. O médico disse que eu deveria tê-lo procurado antes, que não é normal isso. Fez-me várias perguntas, uma qual me fez lembrar de quando era bem pequena e ficara uma noite inteira com o nariz sangrando; quando o sangue só parara de sair depois de algumas injeções que não me recordo direito, mas lembro que doía muito. Ele me olhava com a testa franzida, olhar de insegurança, sem saber o que fazer. Me pediu que fizesse alguns exames, daqueles que chamam "da cabeça" [quais eu não sei o nome, não sei porque inventam nomes tão difíceis para tais exames], e que voltasse alguns dias depois. Nesses dias em que estive esperando os exames, o sangramento aumentou. Como se repulsasse a idéia de ter ido ver um médico. ‘Deveria ter ficado em casa e lavado meus lençóis de sangue!’ Eu pensara. Mas deixei mais uma vez o dia passar. Como um dia qualquer.
Não dormi direito na noite que antecedeu o dia em que eu ia ver o médico. Estava ansiosa e, mais uma vez, meu nariz sangrou. Lembro de todos os meus passos até a clínica. Lembro da cor do tapete, do sorriso falso da secretária que não agüentava estar ali presa entre telefones e canetas. Da face das pessoas que esperavam a sua vez de ser atendida e por fim, do olhar do médico quando me chamou e pediu que sentasse na cadeira com estofado cinza. O médico estava muito educado, me pedira como eu estava me sentido, se estava feliz, se estava namorando, se tinha muitos amigos; enfim, me pedira muitas coisas e tentava ser o mais doce que pudera. Até me ofereceu pequenas balas de frutas que tinha em sua gaveta. E que eu recusei, sempre tinha bala ou algum doce na minha bolsa. Então ele me disse: ‘Prefiro entregar teus exames na presença dos teus pais. Não necessariamente os dois, mas tua mãe principalmente poderia te acompanhar até aqui. Marcamos para amanhã, pode ser? Hoje está bem cheio, terá de ser ama...’ Não! Eu o interrompi. Não pode ser amanhã, nem hoje á tarde. Minha mãe mora em outra cidade, sou eu quem toma conta de mim. Se tiver de falar qualquer coisa que seja, terá de ser para mim! Ele respirou fundo, e me perguntou: ‘Você mora sozinha?’ Sim, lhe respondi. ‘Então, eu sugiro que você encontre alguém para morar contigo. Sugiro não. Você vai precisar ter alguém perto de você!’ Comecei a tremer. Como assim, preciso de alguém perto de mim? Sempre me virei muito bem sozinha. Sou totalmente independente. Me graduei, tenho meu apartamento, um emprego razoável. Vivo muito bem sozinha. Por que diabos vou ter que ter alguém ‘perto de mim’? Poderia ser mais claro? Perguntei. ‘Você está doente. Está doente há muito tempo... é o que dizem teus exames. Deveria realmente ter me procurado antes!’ Mas eu me sinto muito bem doutor. Não sinto dificuldade alguma para realizar nenhuma atividade. Me alimento bem, faço minhas caminhadas; tenho uma vida muito agradável. Não me sinto mal nem quando meu nariz sangra! ‘E é justamente pelo fato do teu nariz sangrar que você está doente. ’
Ficamos quase duas horas ali, conversando. Eu não me interessei em saber o nome da doença, tão pouco o diagnóstico. Ela estava ali, desde que eu nasci e eu nunca percebera. De certa forma, lembro de alguns momentos em minha vida em que tinha certeza de que havia alguma coisa de errado comigo. Sensação do cérebro a se mover. Olhos trêmulos. Descontrole das veias. Não são coisas que as pessoas geralmente sentem. Eu sentia e acabava pensando que era só um desvio dos meus pensamentos refletidos na minha imaginação, aguçando os meus órgãos... Fazendo com que parecesse real, mas que na verdade não era. E que agora, sei que era realmente real. Saí do consultório com o médico quase gritando, pedindo que eu voltasse, dizendo que ele podia me ajudar. Eu respondi seus pequenos gritos com um sorriso. Ele calou-se e ficou me olhando. Eu não o olhei novamente, mas tenho certeza de que ele me olhou enquanto eu atravessava a rua fazendo suas orações, pedindo por mim.
Naquele dia eu não direcionei meus pensamentos para nada, deixei que fossem flutuando junto com a rua. Lembro que apenas caminhei. Caminhei... Caminhei. Comprei um saco de pipocas coloridas e me sentei em um banco qualquer de uma praça com nome famoso. Sorri para tudo ao meu redor. Para os velhinhos jogando xadrez, as crianças no parquinho, os cachorros de rua que andavam de um lado para o outro, procurando um rumo. Aí me lembrei de quando eu era um cachorro daqueles, procurando um rumo na vida, andando, andando e sem saber onde ir. Até que encontrei meu lugar. Ou construí meu lugar. Eu também possuía a total insignificância daqueles cachorros. Quem daria falta de um cachorro de rua? Ninguém. Talvez esses moleques coitados jogados no mundo, que por conta da vida que foram praticamente obrigados a levar, acabam por encontrar diversão nas pedras que jogam nesses cachorros de rua.
Assim eu me sentia. Totalmente insignificante. Vinte e poucos anos, com minha vida andando muito bem. Tinha conquistado tudo que desejara. E derrepente, tudo que conquistara perdera sentido. A vida é podre. Crescemos e mudamos de sonhos, realizamos os poucos que sobrevivem. De certa forma, chega um tempo que os dias se resumem em esperar a morte. Eu nunca havia parado para pensar nisso. Em como o rumo da minha vida estava seguindo. Encontrar alguém para constituir uma família, ou, ficar na minha solidão [da qual eu muito gostara]. Aquela doença só aceleraria os dias.
Saber que a qualquer instante você pode morrer te faz sentir mais viva do que nunca. Mas, todas as pessoas, independente de ter uma doença ou não, sabem que podem parar de respirar a qualquer instante de suas vidas; mas a maioria ignora isso e acabam vivendo de qualquer maneira. Deixam-se dominar pelos medos, pela tristeza, pela solidão de si mesmos, pela depressão do céu cinza... É engraçado como o ser humano só aprende a dar valor para as coisas depois que as perde, começa a viver depois que sente a morte mais perto. Por vezes, nem vive. Não que eu estivesse sentindo vontade de fazer tudo em um segundo. Na verdade, estava. Mas queria controlar isso [como sempre fizera com tudo que sentia.].

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