quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Enquanto vivo, fragmento



Pediu-me muito gentilmente para que eu não chorasse enquanto deixava a mesa e caminhava sem olhar para trás em direção à porta. Eu, como se conseguisse esquecer dos seus olhos, lábios, palavras sussurrando mentiras, fiz-me mulher de mim mesma e, sem acender um cigarro, acompanhei os seus passos até o outro lado da rua; depois acendi um cigarro e pedi uma cerveja, afinal é primavera e as noites se estendem para além do relógio na parede. Então, com muito cuidado, e, sem prestar muita atenção ao chão que sustentava a mesa, enchi o meu copo de cerveja e deixei que a espuma escorresse entre as minhas pernas e deslizasse em estreito riacho pelo chão. Deixei as pernas molhadas e com a saliva molhei a ponta do lápis que raramente se quebrava, mas que muito rapidamente precisava ser afiado feito faca que retoma a vida e, ainda vendo os seus olhos frente aos meus, escrevi as seguintes palavras: "Vejo o meu amor em sangue púrpura que se esvai do meu corpo tal qual suor encontrando a tua pele. Eu vejo os teus olhos e tu não os vê; acaricio a tua sombra e espero o teu toque em meu pescoço num despertar que jamais se repete. Espero encontrar as mãos colhendo flores e as vejo arranhando a terra como se ferisse o próprio ventre. Olho as minhas mãos sem as tuas e já não sinto tanta vontade de roer as unhas; nem a obrigação de tocar tão perfeitamente aquela partitura que caleja os dedos. Vejo meu amor em sangue simples, vermelho igual à vida que não coagula, mas jorra para fora de si mesma quando o corpo quer aprisionar. Retomo o respirar calmo, provocando o coração que quer cada vez mais uma pulsação, mais rápida e forte e me repito. Me repito em erro derrubando sem querer o copo, quebrando o vidro da janela porque esqueci as chaves pensando em não haver mais portas trancadas. Me repito em r de sorriso forte. Na gargante doendo e cuspindo sangue púrpura, igual ao que vejo, meu amor, preenchendo o meu corpo humano. E assim observo a maciez concreta da carne ao redor dos ossos; as mãos escrevendo e os passos que se redobram, voltando para o mesmo lugar."

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fração de segundos...