segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Colorindo o vento...

Andava ruas sem fim, procurando o lápis que continha todas as cores. Procurava entre arbustos e flores, temendo que as aranhas o encontrassem primeiro. Obstante caminhou. Caminhou até que os pés sangrassem e as pedras se acabassem diante do chão. Olhar para trás de nada adiantaria, estava muito longe de tudo aquilo que um dia viveu. Tão longe que tinha certa dificuldade em saber o que realmente havia vivido, e, o que era deveras, fruto de sua imaginação. Mesclou o surreal no real, e viveu. Um capricho seu, era encontrar tal lápis. Teria tudo com ele. Tudo! E a ambição de poder ter tudo, fez com que nem ao menos sentisse os pés ardendo em feridas, despejando sangue por onde passava. Não parou. Nem mesmo quando os grilos lhe ofereçam seu Império. Ignorou. 11 dimensões não faziam sentido algum. Árvores e carros de seis rodas não lhe serviam. Queria o lápis. O lápis que continha todas as cores, para assim, colorir toda a sua vida, que á esta altura estava totalmente ausente de cor.
Passou pela estrada de tijolos amarelos, encontrou a árvore com as maçãs envenenadas e por algum tempo, adormeceu naquele veneno. Entretanto, nenhum anão a encontrou. Contentou-se com as cigarras que cantavam as mais belas canções já ouvidas. E, embora desse valor algum pelas canções, insistente que é, as fez cantar a direção de onde se encontrava o lápis com todas as cores. Seguiu tal direção correndo. O corpo não cansava. Contudo, era obrigada a parar, deitar e desenhar escuras flores que as abelhas tratavam de clarear, e sugar a pequena quantidade doce que ainda havia entre seus dedos,  e que ela despejava nas flores que desenhava. Alguns ferrões não inoculavam sua pele, grossa, como casca de angico. As abelhas desistiram, e se foram na direção contrária à que seus pés traçavam.
O sol chorava, derretendo como a boca, quando toma uma sopa quente. A lua, no entanto, mantinha-se sensata, embora às vezes nociva aos olhos noturnos. Mas nenhum dos dois concordava que o lápis pudesse um dia pertencer a tal coração. Que nem sabia-se mais se batia, ou se estava numa esteira: sem perceber o que o alimentava. Era o que parecia. Não só coração, mas fígado e rim transpareciam o mesmo estado: total falta de vida.
O lápis era uma obsessão intensa, que não se importava com o funcionamento dos órgãos; que dirá da fotossíntese que estava bem em sua frente, nas árvores alimentando o ar. Compreensível: quem não entende o que está dentro de si, tão pouco conseguirá entender o que está fora; assim, não valoriza nem o que está dentro, nem o que está fora.
Experimentou as plantas mais amargas, e as frutas mais doces sem perceber a diferença. Parecia que os olhos viam tudo em preto e branco. Parecia que tudo tinha o mesmo gosto. E, mesmo no pólo norte, parecia estar em Cabo Verde. Números não tinham forma, assim como as letras. Confundia ovelhas e nuvens. Mal sabia o nome de cada uma. Mal sabia o próprio nome. Importava-se apenas com o lápis e, podia vê-lo em todo o lugar. Relutava com gravetos, fazendo-os expandir tinta pelos riachos. Certo dia, arrancou o próprio dedo, pensando ser o lápis. Não sentiu dor. Nem falta do mesmo.
Trapos cobriam parte do corpo, outra parte, nua, crua, roçava o chão e delirava-se. Nada tomava os pensamentos além do lápis. Nem mesmo quando encontrou os olhos mais puros, que lhe foram entregues, e, que recusou. Cegueira de tudo. Podiam morrer milhões aos seus pés, que não faria diferença alguma no mundo que criara. E que, era real. Tão real quanto o som que sai da vitrola e encanta as noites de gala em 42, entremeio à torturas que os olhos negavam-se a ver. Não sabia de 42, não sabia de ontem, e pouco ligava para o que acontecia agora. Só importava-lhe o lápis que continha todas as cores.
Tanto importava-lhe o lápis, que, o Sol e a Lua sabiam que nada faria quando o encontrasse. A não ser contemplá-lo. Se preciso, sem dúvida alguma, perfuraria o próprio abdômen para esconde-lo; para torná-lo parte do seu próprio ser. Transformar-se- ia no lápis.
Poderia, em verdade, transformar-se no lápis, mesmo sem o tê-lo. Mas isso jamais passara pela sua cabeça. Não via a própria capacidade de colorir. Precisava de algo que a colorisse, já que havia perdido todas as cores no decorrer da caminhada. [...]
Em certo amanhecer, encontrou-se em vertigem jamais vista, e o que parecia impossível aconteceu: lágrimas escorreram do rosto até a boca, levando o sal aos lábios. Não sabia o que era aquilo e tratou tal acontecimento com indiferença. Mas o sal atormentava seus pensamentos, e não sabia mais se queria encontrar o lápis. Então, deitou-se. Abriu os braços que pareciam estar atrofiados... Ali permaneceu. Sem nada pensar, sem nada saber. Uma vasta ausência de tudo tomou conta de cada poro que respirava. Espaço algum existia, matéria alguma existia naquele momento. O inexplicável aconteceu e tomou conta do explicável. Atirou-se na imensidão do nada.
Morosamente, o lápis com total prodígio, surgiu nos seus olhos. Um sorriso foi o sinal. Com toda cautela encarregou-se de pintar-lhe a pele e o coração. Deu-lhe novos olhos e costurou-lhe um dedo de flores. Fez-lhe roupas de folhas e passou-lhe mel nos cabelos. Os pés e a alma foram lavados com as águas do rio. Limparam-lhe os ouvidos, e pássaros cantavam em lá menor. Margaridas enfeitaram as mãos como anéis. O doce cheiro de canela enchia as narinas. Na boca, cerejas agiam como batom. Nesta altura, o nada estava longe. Foi substituído pelo todo que a cercava, e que havia esquecido. Tudo então fez parte de um mesmo ponto. O lápis apareceu, terminou o trabalho e se foi...
Ao abrir os olhos, estranhou a luz do sol. Tudo estava na mais perfeita harmonia, na mais sublime sintonia. Sentia-se genuína. Regozijava com os pés dançando no ar. Tudo era afável, tudo era motivo para enaltecer. Assim sorria. Assim permaneceu sorrindo... Até que a noite veio e as estrelas encarregaram-se de conduzir as pernas no melhor caminho. Agora, por onde passava, coloria. E, colorindo se foi...

Um comentário:

  1. Impossível achar uma palavra para te elogiar, incrível é muito pouco. Definitivamente, você tem O Dom! Toda vez que leio seus textos eu fico estarrecido, pois me surpreende mesmo tendo lido vários deles, o que já era para eu ter uma noção de seus próximos. Mas, você se supera!
    Daqui algum tempo, vou poder dizer que "conheci essa escritora antes dela se tornar famosa" hehehehehe :P
    Você tem uma maneira de se expressar que.... ainda não tenho uma palavra para dizer exatamente o que eu acho!

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Fração de segundos...