sábado, 12 de junho de 2010

Envelopes guardados

- Esse quarto tem cheiro de velho!
Disse-me assim que pusera o pé dentro do meu quarto.
- Vou abrir a janela para sair um pouco desse cheiro. Não deveria fumar tanto aqui dentro. Mesmo que eu abra a janela, e o vento passe por aqui, o cheiro de cigarro continuará se movendo no ar. A fumaça que ficou impregnada no meio das cobertas e na palha da cadeira vão se soltar aos poucos atingindo o nosso olfato.
- Então vamos lá fora! Gosto desse cheiro. É o meu cheiro, não tens o direito de falar onde eu devo fumar ou não. Se não gosta do cheiro, vamos lá fora!
- Não me entenda mal minha querida. Sabes que tenho total respeito à você e suas atitudes, e por mim, podemos continuar aqui. Até acendo um cigarro prá contribuir com o odor das paredes.
Ele riu.
- Não seja irônico meu caro amigo!
- Não estou sendo irônico. Estou sendo bem realista. Deverias se importar com o cheiro do teu quarto. O que fará se trouxeres alguém aqui, que não goste do cheiro?
- Desde quando você se tornou comediante? Sabes que não trago ninguém aqui tem muito tempo...
- Há sim, como sei. Mas deverias trazer... Quem sabe assim, tu pudesses mudar de idéia, e começasse a fumar menos.
- Não me venha com conselhos agora! Não é hora para conselhos, ou coisa parecida. Além de que, estou muito bem sem trazer ninguém aqui. E se trouxesse, com toda certeza, seria alguém que não se importaria com o cheiro que as paredes têm.
- Tudo bem. Me desculpe ter jogado tais palavras... E...
- Aliás, você fumou junto comigo aqui muitas vezes. Deixou sua marca com a fumaça no ar.
- Eu sei. Talvez tenha me equivocado, mas, foi só um comentário... não tem por que continuarmos nesta discussão!
- Mas não estamos discutindo! Estamos apenas conversando. Expondo nossas idéias, como todas as noites e dias que sustentaram nossa amizade.
- Como queira, não estamos discutindo. Mas de alguma forma, o que eu falei te afetou.
- Claro que me afetou, como tudo! É meu amigo e não tens o direito de...
- É por ser teu amigo, que tenho sim, o direito de dizer que teu quarto está fedendo o corpo de um velho de 70 anos!
- Pois prá mim, tem cheiro de poeira misturada á água da chuva de maio.
- Ah querida, não me digas isso. Sabes bem o quão bom é o cheiro da poeira misturada ás chuvas de maio, não compare ao cheiro disso.
- Falas como se meu quarto fosse imundo, sujo...
- Não, não. Não se ofenda! Sabes que teu quarto não é imundo e sujo; por vezes um pouco bagunçado, papéis demais pela escrivaninha, roupas aqui ou ali. Mas isso não faz diferença. Tudo está no devido lugar que deveria estar, ou, pelo menos, no lugar que você achou que deveria estar. Não é?
- Com toda a certeza! Como o movimento que a música faz nas nossas mãos enquanto fazemos mais uma queda de braço! Vamos?
- Ah, queres perder mais uma vez?
- Meu bem, eu estou mais forte, uma hora ou outra, te venço! O que vamos ouvir?
- O que este dia pede que ouçamos?
- Sabe que eu queria estar no meio daquela BR, gritando loucamente enquanto os carros passam furiosos.
- Sei, como sei. E confesso que também gostaria de estar lá. Mas não foi esse o combinado. Não se lembra?
- Sim. Lembro-me. Vamos ficar na tranqüilidade hoje. Que prá mim é mais acomodação. Sabe como não gosto dessa palavra... Onde está o isqueiro?
- Não estamos acomodados. Mas precisamos ficar um pouco aqui, sem tanto movimento pelas ruas. Vamos só ouvir um som, fumar alguns cigarros e discutir mais um ponto no tempo!
- E o que vamos ouvir? Onde está o isqueiro? Puta que pariu, tem mil isqueiros aqui, e não se encontra um prá acender um bendito cigarro!
- Calma! Eu guardei no meu bolso. Toma...
- Percebe o efeito que o fogo causa nas nossas partículas que giram ao redor do cigarro enquanto o fogo o domina, o torna vivo, prá morrer aos poucos?
- E nos matar também!
- É, estamos no meio desse vicioso ciclo de viver...
- Como o orvalho na noite...
- Como os pássaros rumando para o sul! Deixando-nos para trás...
- Mas nós também, como pássaros, deixamos coisas para trás. Até nós mesmos.
- Que bom! Que bom que deixamos coisas para trás. Eu não costumo carregar nada além do necessário, é bom se desapegar para continuar a migrar...
- É por isso que ainda tem essas fotos?
- Você sabe que eu não gosto que mecham nas minhas coisas!
- Dói não é?
- Você sabe que sim! Por que insiste nisso?
- Por que você precisa deixar isso para trás. Não vale mais a pena, sustentar o que um dia te moveu...
- E não me move mais!
- E por que ainda guarda isso?
- Por que fazem parte da minha vida; como as velas do bolo do primeiro aniversário; como a nossa amizade! Queres que alguém um dia, chegue aqui e diga que devo jogar fora os nossos momentos insanos, com risos e às vezes lágrimas, ou até mesmo os de sanidade, como está sugerindo que eu faça com essas fotografias?
- Você sabe que não. E sabe também, que são situações diferentes! Deves deixar isso para trás!
- Eu já deixei, já te disse. As fotografias estão aí porque sinto que deverão ficar. Pronto!
- Tudo bem, ainda não está preparada para encarar isso de novo...
- Preparada? Eu já deixei isso para trás e você sabe disso! E eu estou aqui, vivendo! Com ou sem fotografias. E quer saber? Leve as fotos contigo!
- O que disse?
- Leve essas malditas fotos contigo! Queime, jogue fora. Faça o que quiser!
-  Essas fotos nada tem haver comigo. Não farei isso. A vontade de se desfazer ou não dela, é tua... Não chore... Me desculpe, eu não deveria ter dito nada. Eu sei o que você sente, afinal, eu sou o teu melhor amigo...
- Então por que continua insistindo nisso?
- Por que sinto que isso ainda te prende. Três anos passaram, mas você ainda sente. E por mais discreta que você seja, com todo mundo, eu sei o quanto você sofre. Só queria retribuir o quanto você tem me ajudado...
- A tua amizade tem me ajudado muito também, sabe disso.
- Enxugue as lágrimas e põe um Floyd no fundo. Mas deixe baixo... Vamos ler um pouco de Braudel e entender um pouco mais do mediterrâneo.
- Mas a intenção era não fazer nada!
- Humm, tens razão.
- Onde está o isqueiro?
- Está aí do teu lado na mesa...
 - Logo precisaremos comprar mais cigarros...

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