quinta-feira, 18 de março de 2010

Longe disso... refém.


[no que você realmente acredita?]

O meu nome é... O meu nome? Bom, isso já não faz mais diferença, porque nome é o que cada pai ou mãe escolheu para o filho. E, de certa forma é injusto a forma com que carregamos nas costas um nome que é nosso, mas não fomos nós quem decidimos chamar-nos assim. Tão injusto como qualquer decisão na nossa vida, que não é nossa.
Fazem dois ou três anos... Na verdade não sei ao certo quanto tempo faz. Afinal, perdi a racionalidade do tempo, e não faz diferença se é meio dia ou treze horas. O tempo perdeu o sentido prá mim. Assim como tudo o que sou e que me cerca.
Enfim, eu deveria ter meus dezesseis anos, ou dezessete... Ou, quantos anos tenho eu? [...]
O fato é que, não era nem verão nem primavera, era um daqueles dias em que se sai de casa de regata, mas com um cassaco na bolsa porque à noite o vento fino que passa entre meu rosto faz com que os pequenos pêlos dos meus braços se arrepiem e eu sinto frio. Era um dia bonito. Daqueles que se quer rir o dia inteiro; daqueles de tomar um suco de laranja no meio da tarde. Meu melhor amigo me ligou, combinamos de sair á noite. Fumar uns cigarros, beber alguma coisa, mas ter uma boa conversa. Ás oito e dez da noite, enquanto jogava tudo dentro da minha bolsa ouvi o som da buzina do carro que meu amigo pegava emprestado do pai, para que pudéssemos ouvir uma boa música, enquanto nossos pensamentos flutuavam no decorrer da noite. Despedi-me da minha mãe, que me disse prá não voltar tarde. Mal sabia ela, que demoraria dias para me ver. Nem eu sabia.
Entrei no carro, e cumprimentei meu melhor amigo com nosso aperto de mão firme. Ele, assim como eu, [porém eu mais reservada, sempre discreta] estava na angústia do que fazer na vida. Não tinha passado no vestibular, queria ir embora, mas os pais queriam que ficasse. Não sabia realmente o que fazer. [eu assim pensava á seu respeito.] Então ele me olhou nos olhos e disse: ‘- Eu finalmente encontrei algo que me satisfaça! Realmente encontrei algo que vai dar sentido a minha vida, algo que eu sinto que devo fazer!’ Por hora fiquei muito feliz. Logo perguntei o que era, o que finalmente daria sentido a sua vida. Ele me respondeu: ‘-Eu vou fazer o bem para as pessoas. Vou mandá-las para o céu!’ Eu ri. Ele continuou com o mesmo olhar. Sem perder o foco e continuou: ‘- As pessoas querem ir para o céu. E eu vou mandá-las para o céu! Sabe como?’ Eu respondi que não, ele continuou: ‘- Eu vou mandá-las para o céu, mas para isso terei de matá-las. E você, você vai ser a primeira. ’ Fiquei em silêncio, não sabia até que ponto iria à conversa, ele poderia estar blefando. Pensei, é só uma brincadeira, ele vai rir daqui a pouco. Mas eu estava enganada. Ele então prosseguiu: ‘- Eu vou te matar. Vou te causar tanta dor e sofrimento, que até mesmo Deus vai ter pena de você, aí você vai conseguir o céu. Dor e sofrimento levam ao céu, eu vou estar te fazendo um bem!’ Nessa hora meus pensamentos rodavam como carrossel, eu não sabia o que pensar, o que fazer, o que dizer. Eu estava do lado de alguém em quem eu confiava, eram anos de amizade. Eu o amava como meu amigo, e ele acabara de dizer que me mataria. Vendo a frieza de seus olhos eu entendi que tudo aquilo que me dissera era verdade. Lá estava eu, dentro de um carro, passando pela cidade e indo em direção ao lugar que sempre íamos conversar, lugar que chamávamos de ‘esconderijo das teorias’. Ali passávamos a noite filosofando. Mas não fomos lá. Seguimos a diante, eu não conseguia falar. E, quando abri minha bolsa e peguei meu celular na mão, [alguém me socorreria?] Levei um soco. Depois disso, não sei em que estradas andamos e o que aconteceu. Quando acordei, tudo escuro, alguma coisa tapando os meus olhos me impediam de ver. Minhas mãos nas minhas costas, amarradas. O mesmo com meus pés. Eu estava no chão. Mas podia falar. E disse. Chamei pelo nome do meu amigo e perguntei o que estava acontecendo. Ele tornou a me dizer: ‘ – Eu vou te matar. É isso. Simples não é?’ eu me calei mais uma vez, lagrimas escorriam pela minha garganta. Mas eu não as deixava cair. Ao menos, naquele momento não. Mas eu tremia. Como se todos os meus sentimentos se mesclassem. Passos á minha volta. O que aconteceria? Eu queria correr o tempo, saber o que ia acontecer. Não sabia eu, [mas tinha noção.] de que não se corre no tempo. Nem ele corre atrás da gente. Precisamos estar um ao lado do outro, no equilíbrio, para que as coisas aconteçam exatamente da forma com que ele [o tempo.] e eu ‘queremos’.
Passos á minha volta. Consegui ouvir o vento me soprando aos ouvidos quando levei o primeiro golpe nas costas. Não sabia se era madeira ou diamante, mas era um material rígido, que me fizera ficar com a barriga encostada no chão. Logo, outro golpe nas costas seguido de um nas pernas. Me encolhi. Comecei a soluçar. Ele me perguntou: ‘- Está doendo?’ Eu nada falei e levei mais um golpe entre meio as costelas. Acredito que tenha sido nessa hora em que quebrei a primeira costela esquerda. ‘- Está doendo?’ Eu continuei em silêncio. Como se todas as palavras se recusassem sair. Como se nenhum som de vogais ou consoantes existisse. Mais um golpe na cabeça, e eu desmaiei. Eu sei que somos muito mais do que pensamos ser. E eu, que conseguia me ver lá do alto, fazendo tudo que faço, rindo e chorando, naquele momento não foi assim. Eu realmente sentia minha essência e a via do meu lado. Não de cima, mas do meu lado. O meu eu vivendo junto comigo. Lembro claramente do que acontecia enquanto estava desacordada. Conseguia ver meu amigo sentado fumando um cigarro que pegara na minha bolsa, olhando para mim com o mesmo olhar. Nem maldade, nem tristeza. Uma indiferença. Como se eu fosse algo sem sentido nenhum no mundo. Confesso que me senti assim também. Sem valor no mundo, mas com muito valor prá mim. Eu pulsava vida e queria viver. Aí, vi as borboletas e mexi, num impulso, minhas pernas. Meu amigo vendo que eu acordara, levantou e foi até mim, me tirou a venda e mais uma vez olhou nos meus olhos. Beijou minha testa e disse: ‘ Se você não disser que dói, tudo que eu construí não vai fazer sentido. Assim você não vai pro céu.’ Pegou-me no colo e me levou até uma cadeira. Lá me amarrou. Voltou a me vendar. Deu-me um soco do lado direito do rosto que fez meu nariz sangrar e disse: ‘ Logo volto. ’ E foi.
Disseram-me que ele voltou para casa e agiu como se nada tivesse acontecido.
Eu lá, no escuro, tremia por dentro e por fora. Precisava me controlar. Precisava fugir, gritar, mas estava imóvel. Pensei que logo minha mãe daria falta na minha presença e iria atrás de mim, o que meu amigo diria? Alguém me acharia lá, com toda a certeza. No entanto, eu não sabia onde era essa ‘lá’ que eu estava. Depois de girar a via láctea em pensamentos um trilhão de vezes, tentei me soltar e caí. Ali fiquei. No chão que era de madeira, o pó entrava no meu nariz com sangue em pedaços. [...]
Chorei.
Sem perceber adormeci. Dessa vez não acordei com socos, ou pontapés. Acordei com toque de dedos entre meus cabelos que ficavam entre a venda e o pescoço. Por um momento vi a alegria na minha face, que logo se fechou quando ouvi a voz: ‘- Não se preocupe. Eu respeito você. Não vou abusar de você. Admiro nossa amizade e, estou fazendo isso porque amo você como minha irmãzinha, quero que você vá para o céu! Esse é o meu presente prá você!’ Assim como passava a mão entre meus cabelos, veio á puxá-los. Erguendo-me disse: ‘ – Se você está no chão, é porque tentou fugir, não é? Me diga porque você tentou fugir?’ Eu nada dizia. Com a cadeira em pé novamente, me tirou a venda. Agora amarava um pano entre minha boca tão forte que minha mandíbula ficara roxa. Minhas mãos continuaram amarradas atrás da cadeira, meus pés que estavam amarrados um ao outro, agora eram amarrados junto á cadeira, comecei a fazer parte daquele móvel. Olhou para mim e disse: ‘- Não vou te tapar os olhos, quero que você veja tudo que eu sou capaz. Quero que você me mostre tudo que é capaz. Quanta dor você pode agüentar?’ Meu coração disparou. [...]
Uma faca branca, dessas de cortar o churrasco no almoço mesmo. Lentamente meu dedo mindinho foi despejando meu sangue. Doía. Dos meus olhos lágrimas saíam, da minha boca gritos sufocados. Depois do mindinho foram os outros. Três cortes até o osso em cada dedo da mão e do pé. Terminado o trabalho ele me disse: ‘ – Tuas mãos e pés são responsáveis pelos caminhos que você escolheu até hoje, inclusive estar aqui comigo. Se tivesse feito outras escolhas, poderia alcançar o céu de outra forma. Mas como você é humana demais, tem que sofrer. Aí quem sabe numa outra vida, você dê valor prá cada passo que os teus pés forem dar. ’ Eu chorava. Não tinha reparado o que me cercava e, enquanto meu amigo se levantara e fora até uma pequena mesa que estava encostada em uma parede, olhei tudo em minha volta. Um pequeno raio de sol entrava por entre uma fresta na parede de madeira. O espaço era pequeno, a construção não era tão antiga quanto imaginei, tinha energia elétrica, o que significava que eu não estava no meio do nada. Mas não ouvia som algum do lado de fora. Meu amigo voltou com uma espécie de alicate. Me disse: ‘ – Sabia que em muitos momentos o homem usou da tortura, para fazer com que as pessoas dissessem os segredos mais escondidos dentro de si? Eu vou deixar tua boca livre, mas eu não quero que você grite. Não há ninguém aqui perto prá te ouvir gritando, eu quero que você converse comigo, certo?’ Fiz sinal de positivo com a cabeça. Ele me tirou a mordaçalha. Minha respiração estava ofegante.
Apertou meu dedo indicador e o girou, quebrando-o. Nesse momento me pediu: ‘ – eu quero que você me diga o que você fez quando tinha sete anos de idade, naquela quarta-feira de sol?’ Ele estava delirando mais do que eu, assim eu pensava. Me fazendo uma pergunta destas? O que ele queria com aquilo? Eu não era assassina, não fazia o mal para os outros, [se bem que, as ‘bruxas’ na inquisição também não faziam...] o que falaria de uma tarde de sol aos sete anos de idade? Não respondi, e levei um soco na cabeça. Me olhou com olhos de desprezo dizendo: ‘ – Se você não deu valor para uma tarde de sol aos sete anos, porquê daria valor para uma tarde de sol aos setenta?’ até então sua voz estava serena, mas logo as veias de seu pescoço saltaram e ele gritou: ‘ Me diga, qual é a diferença?’ Eu respondi perguntando: ‘ – Queres que eu responda, porque tu não sabes? Precisa que alguém lhe diga o sentido, porque tu não o encontras sozinho?’ A resposta que me deu, foram vários socos seguidos de dois chutes que fizeram a cadeira cair para trás, junto com gritos que dava me pedindo porque eu o questionava. Caída no chão vi meu sangue mais uma vez. Tão vermelho quanto as rosas que eu até então não tinha ganhado de ninguém. Pensei então, que se não morresse ali, mandaria rosas para mim mesma. Até plantaria uma roseira na frente de casa, e observaria a rosa crescer entre os espinhos.
No chão presa a cadeira e a mim mesma ouvi meus gritos soarem entre as paredes, a cada golpe que levava por um pedaço de madeira que eu pensei ser de angico. Golpes em todo meu corpo. Agora, minha cabeça começara a sangrar, do meu lado direito, um maço de cabelos. Cabelos meus. Lembrei de como minha mãe arrumava meus cabelos enquanto eu era pequena, de como ela me amava e foi nesse momento que eu realmente chorei. Sentia lágrimas saindo até mesmo de meus poros. Chorei e muito. [...]
Me amordaçou novamente. Enxugou minhas lágrimas, meu olho esquerdo inchado, porém conseguia enxergar ainda.
[...]
No segundo dia presa ali, fui torturada continuamente durante seis horas. Golpes, cortes, queimaduras. Quando chegou a noite, estava sozinha no escuro.
Nos momentos em que fiquei sozinha, me encontrei em mim mesma. Já não tinha mais medo. Sabia o que iria acontecer. Fechei meus olhos e ao contrário do que qualquer outra pessoa pensaria, eu desejei acordar no outro dia. E acordei.
No terceiro dia, não ouvia mais o que meu amigo falava. Como não ouvia, não respondia o que me perguntava. A dor era cada vez mais profunda, e a vida cada vez mais intensa. Acredito que deveria ser sete horas da noite quando saí e vi o céu. Meu amigo me deixando no chão, com sangue, pele, lágrimas misturadas à poeira do chão, não se preocupou em me amarrar. Foi. Vagamente lembro sua voz me dizendo: ‘- viva pelo menos até amanhã ao meio dia.’ Eu não sei quanto tempo eu fiquei no chão até que levantei. Eu me arrastava e me segurava nas paredes, mas estava em pé. Porta trancada, sem janelas. Eu estava sem saída. [ou não?] Voltei ao chão e chorei mais uma vez. Por onde sairia? Senti-me fraca e me vendo de cima [mais uma vez.] vi a saída. Telhas velhas, teto sem forro. Na mesa que tinha facas e objetos que não sei dizer o nome, subi. Minhas mãos quase sem movimentos fizeram com que algumas telhas saíssem para o lado, empurrando com a madeira suja de meu sangue fiz um espaço no telhado, o suficiente para que eu pudesse passar. Foi horrível. Com metade do corpo para fora da casa, metade para dentro, vi o céu que me fazia querer ir além! Subir nas estrelas! Eu estava em cima da casa, com o escuro ao meu redor e o céu me iluminando. A casa não era alta, mas estava no meio de árvores, muitas, uma pequena ‘selva’. No chão me arrastei, me segurei em árvores, tive medo, frio, fome, sede. Meu amigo havia me dado água, e em um momento me deu um pedaço de um tipo de pão com um doce no meio, tão pequeno que engoli inteiro os três pedaços que me dera. Não sei o quanto caminhei, sei que dormi no meio do nada, jogada no meio do ‘mato’.
Acordei com o sol quente batendo no rosto, moscas nos meus pés faziam ter vontade de coçá-los. Andei mais um tempo. Mudava de direção, mas parecia estar no mesmo lugar. Ouvi então um barulho de motor. Talvez fosse um fusca, mas o som me mostrou por onde seguir. Andei e fechei os olhos. Não sei o que aconteceu nesse instante. Sei que eu estava no meio das flores com as borboletas quando lambidas seguidas de: ‘ – Meu Deus do céu!’ me acordaram. Um senhor, perto dos 50 anos me enchia de perguntas e gritava para outro vir ajudá-lo. Eu nada falava. Três ou quatro cachorros ao meu redor balançavam os rabos e sorriam para mim, eu sorria também. Outro homem veio, este mais novo, me colocou nas costas e me levou. Desmaiei nas suas costas. [...]
Quando acordei, mal podia abrir os olhos, mas sabia que minha mãe estava do meu lado, segurando minha mão. E depois de ‘tudo escuro’, eu estava ‘tudo branco’, era o hospital.
Eu não sei quanto tempo fiquei em recuperação, já disse que perdi a perspectiva do tempo? Mas o médico disse que me recuperei, até mais cedo do que o normal. [...]
O meu amigo. Ele também se recuperou. Virou uma lenda. Muitas histórias surgiram sobre o porquê ele havia feito o que fez e o rumo que tomara depois do acontecido. Sumiu... Mas eu, eu sei onde ele está. Às vezes ele me liga, não está tão longe daqui. Construiu uma nova vida, inclusive novo nome. Assim como eu, ele também encontrou a sua essência, realmente entendeu todo o sentido. [...]
Sorrimos esses dias no telefone, porque, nem tudo saiu exatamente da forma com que planejamos no nosso esconderijo. Alguns detalhes superaram as nossas expectativas, e o esconderijo, continua ativo, aqui e em qualquer lugar.



[...]

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