domingo, 16 de maio de 2010

E a noite?

À medida que esfriava eu colocava uma coberta a mais em cima das minhas pernas, de modo que meu sangue permanecesse quente como o molho de pimenta que meu pai preparava. Eu não podia morrer de frio. Não. Não me permito morrer de frio num mundo cheio de cobertores, aquecedores, casacos térmicos e toda essa parafernália que o ser humano inventou e ditou como necessário. Pegava mais uma coberta e arrumava os travesseiros nas minhas costas, de modo que ficasse confortável. [confortável? Como posso falar em confortável no estado em que encontro? Confortável seria estar me esquentando lá fora sentada no gramado, contemplado o calor do sol, não aqui nessa cama, submetida a cobertores fedidos sabe-se lá de quem foram. Mas não sei se tenho direito de reclamar. Afinal, fui eu mesma quem me conduziu até aqui, e graças ao meu cérebro que pensava, pensava pouco, mas pensava. Conseguiu fazer com que minhas pernas encontrassem um lugar como esse aqui, para velhinhas que já não tem mais onde ir. o fato é que eu tinha aonde ir. Mas perdi meu ticket. Me barraram na entrada do cometa. E como eu queria ter ido junto com o cometa...] Tenho de ficar ‘confortável’ para continuar minhas leituras. Ler e esperar a hora da sopa! Queria ver o que seria de mim se não gostasse de sopa. Ainda bem que aprendi a gostar desde jovem a comer sopa. Eu sabia do futuro que me esperava, por isso aprendi a gostar de sopa, muito antes de precisar dela.
A enfermeira que me traz a bendita sopa de todos os dias, com meia dúzia de grãos de arroz e algumas cenouras raladas, me olha com certa pena escorrendo pelos olhos. Deve pensar que eu não consigo fazer mais nada. Que eu sempre fui um nada, estou ciente. Contudo, pensar que eu não consigo mais fazer nada? Isso eu não admito! Mal sabe ela dos meus planos, de tudo que está na minha cabeça, mal sabe ela! Qualquer dia faço mil pedaços desse prato de sopa, e faço essa enfermeirinha voar pela janela com um só golpe! Não para que eu me sinta mais viva, mas para relembrar na prática os tempos que ficaram para trás, como as páginas do livro que eu devoro dia-a-dia, mas que ficam arquivados na minha memória. Tempos que estão bem vivos! Tão vivos quanto qualquer pessoa que anda pelas ruas sem saber onde está indo... Não faria isso para me sentir mais viva. Entretanto, faria para que essa enfermeirinha se sentisse mais viva. Eu a faria voar pela janela e quem sabe até quebrar algumas costelas, prá que na dor ela sentisse a vida pulsando. Esses jovens preferem sentir o gosto da vida na dor, então, quando estão com a cabeça na lama pedem prá morrer. Quanta infantilidade. Mas eu compreendo, também tive meus dias assim. E graças ao meu bom cérebro foram dias que passaram, e foram poucos. Como o vômito. Se vez ou outra eu não vomito em uma enfermeira, ou qualquer um que aparece aqui vestido de palhaço, cantarolando músicas sem graça, pensando que estão contribuindo para que o mundo fique mais feliz, com mais compaixão, que palermas! Se for prá cantar alguma coisa, que cantem um rock n’ roll! Enfim, se não vomito aqui e ali, esses filhos da mãe desses jovens, acabam por pensar que toda comida que entra pela boca, vai sair você sabe muito bem por aonde! Talvez seja por isso que eu bebia demais, prá vomitar e ver que o meu corpo repulsa o que não é bom prá ele. Da mesma forma que fazia quando lia o jornal.
Eu vou atirar ela pela janela, e me jogar junto! Quem sabe ela aprenda a voar. Algumas pessoas não aprendem a voar sozinhas, têm de ser atiradas pela janela! Mas antes de atirá-la pela janela, vou desenhar-lhe pequenas assas...
-Bom dia senhora capitã do vôo. Tome aqui seu remédio e coma toda sua sopa... Ainda pensa em desenhar assas em mim?
- Você não quer quebrar mais costelas, quer?

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